Artigo Entre Viagens

NAVEGAR O MEKONG

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janeiro de 2020
Um mistério ao teu alcance

Os portugueses tinham o seu pedaço de Áfri-ca, os holandeses a Indonésia, os ingleses a Índia. E os franceses tinham a Indochina. O conceito era deles: antes da ocupação, nenhum viet-namita sonharia jamais em associar-se com um kh-mer ou um laotiano. Foi a agregação mais ou menos fortuita, mais ou menos violenta, por parte de uma potência colonial europeia destes três países – Viet-name, Camboja, e Laos – que forçou uma coerência geopolítica ao bocado de planeta que se estendia en-tre o então império da China e o reino da Tailândia.

Na visão expansionista de alguns franceses vi-sionários, na realidade até seria possível apresen-tar um fio condutor, um símbolo de coesão, uma lógica geográfica para a entidade colonial chamada Indochina: o rio que a atravessa. O Mekong podia ser o elemento agregador da Indochina francesa. Mas primeiro era preciso compreendê-lo, mapeá-lo, conquistá-lo!

Este rio não é um rio qualquer. É o décimo se-gundo maior curso de água do mundo, um épico internacional que nasce no Tibete, atravessa o sul da China, faz de linha de fronteira várias vezes a vá-rios países e, depois de quase cinco mil quilómetros de turbulência e poder, desagua no Oceano Pacífico. Quando os franceses consolidaram a sua presença na Indochina, compreenderam que o Mekong era um mistério – não apenas para a Europa, mas tam-bém para as próprias sociedades que desde sempre habitavam as suas margens. Ou seja, muito pouco se sabia deste rio. Não era por acaso.

Desde os desfiladeiros profundos dos Himalaias, aos remoinhos traiçoeiros da fronteira da China com a Birmânia, às cataratas intransponíveis en-tre o Laos e o Camboja, passando pela malária, o dengue, as sanguessugas, as diarreias, a época das chuvas e incluindo por fim a animosidade de vários principados ao longo do seu curso, tudo se conjuga-va para fazer do Mekong um buraco negro no mapa das explorações europeias do século XIX. Num es-forço inglório e hoje pouco recordado, gerações de exploradores franceses – Henri Mouhot, Doudart, de Lagré, Francis Garnier, Auguste Pavie – conse-guiram por fim comple-tar e mapear o curso do brutal Mekong para, com grande frustração, con-cluir que o rio não só não

Não tenhas pressa em partir de Doc Chau. Podes visitar o mercado flutuante sem precisar de procurar um guia ou um barqueiro: eles vêm ter contigo

era comercialmente navegável, como não repre-sentaria nunca uma artéria de coesão cultural e de controlo político.Hoje – várias guerras, ditaduras e genocídios de-pois da frustrada colonização europeia – o Mekong continua a ser pouco navegável e pouco conhecido. A região por ele banhada vive por fim uma estabili-dade paradoxal de livre comércio e opinião contro-lada. As novas estradas que se estendem pela sua bacia hidrográfica, cada vez mais percorridas por mercadorias de, e para, a China, tornam obsoleto o desígnio colonial de fazer do Mekong uma das vias comerciais incontornáveis do Sudeste Asiático. O transporte de passageiros é ainda mais obsoleto. Só mesmo em alguns troços é que existe um serviço regular e mesmo assim pouco considerado pelas populações locais. E no entanto, ou talvez por tudo isto, navegar o Mekong é um dos grandes desafios de uma viagem à Ásia.

O mistério subsiste. As margens continuam impenetráveis e encantatórias. O rio assusta, turbulento e imprevisível. Muitas embarcações mantêm-se arcaicas, vagamente inquietantes e desconchavadas, desafiando a sorte em cada nova viagem. Fora dos circuitos turísticos mais óbvios, e com uma boa dose de paciência e aventura, a navegação do Mekong pode ser feita por ti. Não é apenas um capricho, uma bizarria, uma mania de ser diferente. Escolher navegar o Mekong impli-ca entrar na órbita de algumas das preciosidades culturais e paisagísticas do Sudeste Asiático. A questão não é: «para quê navegar o Mekong?»; mas sim, «porque não o fazer já que estou nas suas margens?»Qualquer manual das cem coisas que tens que fazer antes de morrer, qualquer top-ten das atra-ções asiáticas, te dirá: não percas os templos de Angkor, a cidade iluminada de Luang Prabang, as

Este rio é um épico internacional que nasce no Tibete, faz de linha de fronteira a vários países e, depois, desagua no Oceano Pacífico

cataratas de Khone, as capitais de Phnom Penh e Saigão, o delta. Todas elas estão ao pé do Mekong. E se o manual for afinal de duzentas coisas, e a lista for top twenty, então encontras mais umas quantas: o obscuro templo de Wat Puh, o arquipélago das 4000 ilhas, as grutas de Pak Ou, a vibrante peque-na capital do Laos, Vientiane, as cidades pacatas de Paksè, Huay Xay, Battambang, as aldeias flutuantes do lago Tonlé Sap, os mercados flutuantes de Chai Doc e Cantho.

E se o manual incluir a minha lista, então estará lá a experiência irrepetível dos crepúsculos a bordo de um cruzeiro no Mekong, um café numa espla-nada em Siem Reap, uma cerveja na praia de Phu Quoc. Todas estas etapas obrigatórias, estas listas imprescindíveis estão ligadas por um fio condutor, por uma lógica geográfica: o rio Mekong. Navega esse mistério líquido, vence o paradoxo francês, es-creve a tua lista.

Rio acima ou rio abaixo?

Segue uma descrição das várias possibilida-des de navegação do mighty Mekong. Escolhi avançar de jusante para montante mas claro que o percurso inverso é igualmente exequível, e se-ria difícil concluir qual dos sentidos tem mais van-tagens ou mais complicações.Ainda por cima, estamos a falar de uma expe-riência intermitente, de trajetos independentes entre si, logo cada trajeto permite o seu próprio sentido de marcha. Tanto posso viajar desde Luang Prabang para Huay Xai como o oposto. Mas por vezes, certas condicionantes terão que ser tomadas em conta: para entrares no Vietna-me precisas de obter antecipadamente um visto num consulado vietnamita; pelo contrário, para visitar o Camboja, podes obter o visto no posto de

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