NAVEGAR O MEKONG
![](https://goncalocadilhe.com/wp-content/uploads/2013/01/um-misterio-ao-teu-alcance-1.jpeg)
Um mistério ao teu alcance
Os portugueses tinham o seu pedaço de Áfri-ca, os holandeses a Indonésia, os ingleses a Índia. E os franceses tinham a Indochina. O conceito era deles: antes da ocupação, nenhum viet-namita sonharia jamais em associar-se com um kh-mer ou um laotiano. Foi a agregação mais ou menos fortuita, mais ou menos violenta, por parte de uma potência colonial europeia destes três países – Viet-name, Camboja, e Laos – que forçou uma coerência geopolítica ao bocado de planeta que se estendia en-tre o então império da China e o reino da Tailândia.
Na visão expansionista de alguns franceses vi-sionários, na realidade até seria possível apresen-tar um fio condutor, um símbolo de coesão, uma lógica geográfica para a entidade colonial chamada Indochina: o rio que a atravessa. O Mekong podia ser o elemento agregador da Indochina francesa. Mas primeiro era preciso compreendê-lo, mapeá-lo, conquistá-lo!
Este rio não é um rio qualquer. É o décimo se-gundo maior curso de água do mundo, um épico internacional que nasce no Tibete, atravessa o sul da China, faz de linha de fronteira várias vezes a vá-rios países e, depois de quase cinco mil quilómetros de turbulência e poder, desagua no Oceano Pacífico. Quando os franceses consolidaram a sua presença na Indochina, compreenderam que o Mekong era um mistério – não apenas para a Europa, mas tam-bém para as próprias sociedades que desde sempre habitavam as suas margens. Ou seja, muito pouco se sabia deste rio. Não era por acaso.
![](https://goncalocadilhe.com/wp-content/uploads/2013/01/um-misterio-ao-teu-alcançe-3-1.png)
Desde os desfiladeiros profundos dos Himalaias, aos remoinhos traiçoeiros da fronteira da China com a Birmânia, às cataratas intransponíveis en-tre o Laos e o Camboja, passando pela malária, o dengue, as sanguessugas, as diarreias, a época das chuvas e incluindo por fim a animosidade de vários principados ao longo do seu curso, tudo se conjuga-va para fazer do Mekong um buraco negro no mapa das explorações europeias do século XIX. Num es-forço inglório e hoje pouco recordado, gerações de exploradores franceses – Henri Mouhot, Doudart, de Lagré, Francis Garnier, Auguste Pavie – conse-guiram por fim comple-tar e mapear o curso do brutal Mekong para, com grande frustração, con-cluir que o rio não só não
![](https://goncalocadilhe.com/wp-content/uploads/2013/01/mercado-1.jpeg)
Não tenhas pressa em partir de Doc Chau. Podes visitar o mercado flutuante sem precisar de procurar um guia ou um barqueiro: eles vêm ter contigo
era comercialmente navegável, como não repre-sentaria nunca uma artéria de coesão cultural e de controlo político.Hoje – várias guerras, ditaduras e genocídios de-pois da frustrada colonização europeia – o Mekong continua a ser pouco navegável e pouco conhecido. A região por ele banhada vive por fim uma estabili-dade paradoxal de livre comércio e opinião contro-lada. As novas estradas que se estendem pela sua bacia hidrográfica, cada vez mais percorridas por mercadorias de, e para, a China, tornam obsoleto o desígnio colonial de fazer do Mekong uma das vias comerciais incontornáveis do Sudeste Asiático. O transporte de passageiros é ainda mais obsoleto. Só mesmo em alguns troços é que existe um serviço regular e mesmo assim pouco considerado pelas populações locais. E no entanto, ou talvez por tudo isto, navegar o Mekong é um dos grandes desafios de uma viagem à Ásia.
O mistério subsiste. As margens continuam impenetráveis e encantatórias. O rio assusta, turbulento e imprevisível. Muitas embarcações mantêm-se arcaicas, vagamente inquietantes e desconchavadas, desafiando a sorte em cada nova viagem. Fora dos circuitos turísticos mais óbvios, e com uma boa dose de paciência e aventura, a navegação do Mekong pode ser feita por ti. Não é apenas um capricho, uma bizarria, uma mania de ser diferente. Escolher navegar o Mekong impli-ca entrar na órbita de algumas das preciosidades culturais e paisagísticas do Sudeste Asiático. A questão não é: «para quê navegar o Mekong?»; mas sim, «porque não o fazer já que estou nas suas margens?»Qualquer manual das cem coisas que tens que fazer antes de morrer, qualquer top-ten das atra-ções asiáticas, te dirá: não percas os templos de Angkor, a cidade iluminada de Luang Prabang, as
![](https://goncalocadilhe.com/wp-content/uploads/2013/01/mochileiras-1.jpeg)
Este rio é um épico internacional que nasce no Tibete, faz de linha de fronteira a vários países e, depois, desagua no Oceano Pacífico
cataratas de Khone, as capitais de Phnom Penh e Saigão, o delta. Todas elas estão ao pé do Mekong. E se o manual for afinal de duzentas coisas, e a lista for top twenty, então encontras mais umas quantas: o obscuro templo de Wat Puh, o arquipélago das 4000 ilhas, as grutas de Pak Ou, a vibrante peque-na capital do Laos, Vientiane, as cidades pacatas de Paksè, Huay Xay, Battambang, as aldeias flutuantes do lago Tonlé Sap, os mercados flutuantes de Chai Doc e Cantho.
E se o manual incluir a minha lista, então estará lá a experiência irrepetível dos crepúsculos a bordo de um cruzeiro no Mekong, um café numa espla-nada em Siem Reap, uma cerveja na praia de Phu Quoc. Todas estas etapas obrigatórias, estas listas imprescindíveis estão ligadas por um fio condutor, por uma lógica geográfica: o rio Mekong. Navega esse mistério líquido, vence o paradoxo francês, es-creve a tua lista.
Rio acima ou rio abaixo?
Segue uma descrição das várias possibilida-des de navegação do mighty Mekong. Escolhi avançar de jusante para montante mas claro que o percurso inverso é igualmente exequível, e se-ria difícil concluir qual dos sentidos tem mais van-tagens ou mais complicações.Ainda por cima, estamos a falar de uma expe-riência intermitente, de trajetos independentes entre si, logo cada trajeto permite o seu próprio sentido de marcha. Tanto posso viajar desde Luang Prabang para Huay Xai como o oposto. Mas por vezes, certas condicionantes terão que ser tomadas em conta: para entrares no Vietna-me precisas de obter antecipadamente um visto num consulado vietnamita; pelo contrário, para visitar o Camboja, podes obter o visto no posto de